Autismo – A Nossa História

Meu nome é Tatyana, tenho 36 anos, sou mãe de um lindo menininho autista de dois anos chamado Rafael. Primeiro neto dos dois lados da família, meu filho foi uma criança extremamente desejada, planejada e comemorada. Quando grávida, me perguntavam se eu desejava um menino ou menina e a resposta estava sempre pronta: “só peço a Deus que tenha saúde”. E é a resposta que a maioria de nós dá, não é? Não costumamos nos preparar para receber um filho especial…

Por algum motivo, imediatamente após o parto do Rafael o sentimento de êxtase que me acompanhou durante toda a gravidez foi substituído por um profundo sentimento de insegurança e rompimento. Acometida por fortes dores pós-parto por conta de um erro de procedimento, tomando uma quantidade imensa de remédios que deveriam me derrubar na cama por dias, eu fiquei insone as primeiras três semanas.

Amamentava meu filho chorando escondida no quarto, sem poder me sentar de dor. Mesmo conhecendo todos os sintomas de uma depressão pós-parto, demorou um tempo até que eu me desse conta de que estava deprimida, o que já dura mais de dois anos, período esse em que acabei me isolando de boa parte da humanidade.

Tatyana e seu filho Rafael
Tatyana e o Rafael

Rafael teve um desenvolvimento inicial bastante normal, com exceção de um temperamento extremamente inseguro e um comportamento “campo minado” – eu jamais era capaz de prever quando ele iria irromper numa crise de choro – e não me sentia capaz de controlar esta crise a não ser através da amamentação. Hoje, eu sei que a amamentação era o único recurso que ele conhecia para se auto-regular durante suas crises sensoriais, bastante comuns em crianças autistas, que podem se sentir extremamente sobrecarregadas diante de estímulos audiovisuais, táteis, vestibulares.

Quando Rafael tinha por volta de um ano, desenvolvia uma acentuada seletividade alimentar e começava a acumular atrasos motores, atencionais, de socialização e comunicação em relação às crianças da sua idade. Eu voltava sempre preocupada dos passeios em que encontrava outras crianças da idade dele.

A velha máxima – “Cada criança tem seu tempo”

Aquela conhecida frase “cada criança tem seu tempo”, mesmo quando dita com intenção de acalmar, é uma grande inimiga da criança autista. Já está exaustivamente comprovada a eficácia da chamada Intervenção Precoce em crianças autistas, ou seja, quanto mais cedo se inicia o tratamento, maior a chance de sucesso. Avó extremamente atenta e sensível, minha mãe me ajudou a enxergar que o quadro do Rafael não era apenas uma “fase” e que aquelas dificuldades de socialização iam além de uma simples timidez.

Essa foi a primeira e talvez única vez na vida que eu ser extremamente ansiosa e inquieta me trouxe algo de bom – eu simplesmente não conseguia “deixar para lá” aquela pulguinha que ela colocou atrás da minha orelha. Saí em busca de respostas e com 1 ano e 5 meses o Rafael já estava iniciando o seu tratamento.

O diagnóstico autista

Nunca saiu da minha mente uma frase que ouvi de uma grande profissional da área, no momento mais difícil de todos: “você está vivendo talvez a fase mais difícil da sua vida, mas é o seu sofrimento que fará seu filho avançar como nenhuma outra criança. É a sua inconformação que fará com que você busque para ele o melhor tratamento possível, é a sua inquietação que fará com que você vire madrugadas estudando a melhor forma de lidar com ele e isso irá mudar a vida dele para sempre”.

Aquela frase me trouxe um imenso alívio; se não era possível deixar de sofrer, ao menos aquele sofrimento seria transformado em algo positivo. Essa frase tão poderosa ao mesmo tempo reconheceu e acolheu o que eu estava sentindo, me transmitindo força e esperança para o futuro.

A reação da família e amigos

Meu marido, meu cúmplice há 20 anos, precisou vencer a si mesmo para conectar-se conosco. Para mim, acolhimento. Despiu-se de todo e qualquer julgamento e foi além das suas próprias capacidades para exercitar uma empatia que eu nunca havia experimentado com ele antes. Me ajudou a estudar e desvendar aquele mundo novo para nós chamado Autismo. Para o Rafa, carinho e dedicação.

Noite após noite, mesmo exausto pelo dia de trabalho e o trânsito, ele e Rafa transformam a casa numa festa. Rolam pelo chão às gargalhadas, brincam de cavalinho e conversam numa língua própria, de um amor que vai muito além de qualquer diagnóstico.

Minha mãe, por vezes tão guerreira, por vezes tão delicada, foi meu exemplo de força e pé no chão. Após assistir a vídeos de um bebê autista que se assemelhava muito ao Rafael, poucos dias antes do diagnóstico, desesperada, trêmula, chorando, liguei para ela. “Mãe, é autismo, não é?”. Eu esperava que ela chorasse, emudecesse. Firme, ela me respondeu “é, filha, acho que é sim. Mas vai dar tudo certo. Você não está sozinha. Eu estou aqui do seu lado e eu vou estar sempre. Daqui a pouco vou para sua casa”. Choramos sim, muito. Mas nunca esqueci a sinceridade dela naquele momento. E realmente, ela sempre esteve ao meu lado, antes e depois deste dia.

Criança feliz pintando um coração de peças de quebra-cabeça, símbolo do autismo.
Fonte: Canva

Infelizmente eu não recebi a mesma dose de empatia da maior parte dos meus amigos. Já reclusa há bastante tempo por conta da depressão e das dificuldades que a maternidade por si só impõe a todas as mães (atípicas ou não), eu me isolei ainda mais após o diagnóstico de autismo do Rafael.

Não é fácil socializar quando você acumula todas as responsabilidades da maternidade com os desafios de ser mãe de uma criança especial. Não é fácil socializar quando o seu filho, a pessoa mais importante do mundo pra você, só fica bem de verdade quando está longe de todos. Não dá muita vontade de sair de casa quando passear exige a energia necessária para vencer uma batalha…

E não foi nem um pouco fácil encontrar amigos e familiares realmente dispostos a compreender, a acolher, a reconhecer meus sentimentos. Quando eu tentei explicar para as pessoas sobre o meu sentimento de luto, de perda de tudo que eu havia idealizado quando engravidei, da sensação de desconexão, da perda de qualquer condição de previsibilidade da infância do meu filho (que mãe hoje em dia não gosta de acompanhar os marcos de crescimento do filho?), foram raras as demonstrações reais de empatia.

Por muito tempo isso foi motivo de tristeza para mim, hoje eu penso que a vida se encarregou de selecionar para mim as pessoas que realmente mereciam meu amor e minha atenção. Aqueles amigos e familiares que nos compreenderam, nos deram espaço quando necessário, nos abraçaram quando necessário, torceram e comemoraram conosco cada pequena vitória.

Eu estava vivendo um momento turbulento, de muito mais dúvidas que certezas, ainda não estava claro qual seria a gravidade do quadro do Rafael, se ele viria um dia até mesmo a falar.

O dia a dia

Até Rafa ter um ano e meio, eu jamais tinha conseguido brincar com ele. Nunca havia empilhado dois blocos sequer. Não compreendia nada do que falávamos, não era capaz de imitar o gesto mais simples, não era capaz de sinalizar suas vontades, mesmo sede ou fome. Batia a cabeça contra a parede, o chão, uma quina qualquer frente à menor contrariedade.

Mamava esperneando porque embora quisesse mamar, não queria que eu o tocasse. Não ia no colo de praticamente ninguém e nos unhava com força no rosto se qualquer pessoa na rua o olhasse nos olhos. Por um período eu saía com ele trêmula na rua e pedindo a Deus que ninguém se aproximasse. Voltava suando frio para casa. Parecia que não ia passar nunca…

Mas passou. Eu costumo dizer que ser mãe de autista faz com que os pontos baixos da infância sejam mais baixos e os altos, mais altos ainda.

Uma mão segurando um símbolo do autismo: infinito colorido.
Fonte: Canva

Os marcos da vitória

Ah, os altos… Os altos me emocionaram e me emocionam diariamente. Nada passa despercebido por aqui. Eu chorei quando Rafa empilhou pela primeira vez dois blocos, depois três, depois quatro. Cada um deles foi uma vitória. Eu chorei quando ele conseguiu encaixar a primeira forma.

Eu chorei aos soluços quando ele finalmente caminhou, quando ele foi ensinado a olhar nos olhos, a apontar, a apontar olhando (porque é muito mais difícil fazer as duas coisas ao mesmo tempo). Eu gritava de alegria quando ele conseguiu demonstrar que estava com sede apontando o copinho de água, e passei a espalhar tudo que ele gostava de comer pela cozinha, para que ele pudesse apontar o que tinha vontade.

Um dia, olhando para o copinho d´água, ele falou “guá”. Eu ria, chorava, tudo ao mesmo tempo. E ele falou guá mais umas dez vezes até eu limpar as lágrimas e me dar conta de que a água tinha acabado e ele queria mais. Entreguei a água gargalhando e ele ria junto, orgulhoso…

Pouco tempo depois, me puxou pela mão, me levou para o seu quarto, pegou um carrinho na estante, me rolou pela primeira vez na vida o carrinho, e ficou me olhando, esperando que eu devolvesse. Era a primeira vez que brincávamos assim, a dois, com o mesmo brinquedo, por vontade dele. Eu peguei ele no colo, jogava-o para cima, rindo e chorando ao mesmo tempo. Meu filho queria brincar comigo! Brincar… comigo!

Algo muito quente derretia dentro de mim e continuou a derreter por muito tempo: o meu auto julgamento, a minha culpa, a sensação de que eu era a pior mãe do mundo, a única que não sabia brincar com o próprio filho, que não sabia ensinar nada ao filho. Algum tempo depois vieram os primeiros beijos, os primeiros abraços, os sorrisos compartilhados, os primeiros gestos sociais. Nada foi simples, nada foi fácil. Mas fez e faz valer cada segundo de esforço.

E eu hoje me considero a mãe mais feliz e orgulhosa que eu poderia ser, meu filho fosse atípico ou não. Eu jamais mudaria um dia na minha vida, mesmo os mais difíceis, porque todos eles foram necessários.

Numa tarde como outra qualquer, Rafael de repente se aconchegou à minha mãe no sofá para assistir seu desenho preferido. Com tanto espaço entre os dois no sofá, ele preferia estar aconchegado a ela, de mãozinhas dadas com a avó. Minha mãe me olhava perplexa, boca aberta, lágrimas escorrendo. Era o jeitinho dele de demonstrar amor… ele começava a abrir uma janelinha para dentro do seu mundo.

E essa janelinha foi crescendo, se transformou numa porta sem chave que aumenta mais a cada dia, por onde passam livremente eu, meu marido, os familiares e amigos mais próximos e a maravilhosa equipe de terapeutas que, com muita perseverança, carinho e dedicação, ensinaram tudo não apenas ao Rafa, mas ensinaram também para mim e minha família, um caminho para esta porta e transformaram para sempre a vida do meu filho.

Mas isso é tema para uma próxima conversa ?

Tiaum*, meu filho…

*”Te amo”, de acordo com o vocabulário do Rafa.